20 setembro, 2009

por onde o ser flui

between you and me
© Fabio Giannelli

Zona secreta, solidão onde se refugiam os seres - e as coisas -, é ela que dá beleza à rua: por exemplo, se for sentado basta olhar pela janela. A rua cede o que o autocarro devassa. Sigo demasiado depressa para ter tempo de reter rostos ou gestos, a velocidade exige do meu olhar igual velocidade, e por isso nem um rosto, um corpo, ou atitude sequer, me esperam: tudo está ali a nu. Registo: um homem enorme, curvado, muito magro, peito escavado, óculos, o nariz comprido; uma dona-de-casa gorda caminha lentamente, pesada, triste; um velho sem graça, uma árvore solitária, ao lado outra árvore solitária, e outra...; um empregado, outro, uma multidão de empregados, a cidade inteira cheia de empregados curvados, todos juntos num pormenor que os meus olhos registam: bocas crispadas, ombros caídos...uma a uma, talvez devido à velocidade dos meus olhos e do veículo, as suas atitudes ficam rabiscadas tão depressa, tão rápido surpreendidas em seu arabesco, que cada ente é-me revelado no que tem de novo e insubstituível - invaravelmente uma ferida - graças à solidão onde essa ferida os coloca e eles mal reconhecem, se bem que todo o seu ser aí flua. Atravesso assim uma cidade esboçada por Rembrandt, com cada qual e cada coisa fixos numa verdade que dispensa beleza plástica. A cidade feita de solidão.....solidão como eu a entendo, não designa estatuto de miséria mas secreta soberania, nem profunda incomunicabilidade mas conhecimento mais ou menos obscuro de uma singularidade intocável.


Jean Genet, in O Estudio de Alberto Giacometti, pp. 34,-35

10 comentários:

Anónimo disse...

Este era masoquista? lolol :)

Beijinho e bom domingo

José Manuel Vilhena disse...

Muito curiosa a relação do texto com a fotografia.Fragmentos suspensos no meio do rodopio.
um beijinho

Paulo disse...

Fantástico o seu post. Há um enriquecimento mútuo (fotografia e texto) com um resultado magnífico. Parabéns.

El Viejo @gustín disse...

Gi.
hermosa cita.
y coincido con JMV,con respecto a la imagen.

1 beso enorme, desde aqui del Sur, del confin del mundo

Maria José Rezende de Lacerda disse...

Vim aqui para lhe agradecer a sua visita em meu blog. Obrigada por suas palavras. Gostei deste seu espaço também. É profundo. Ainda estou pensando sobre a solidão como "conhecimento obscuro de uma singularidade intocável". Frase linda, de impacto e que nos leva a grandes reflexões. Grande abraço.

Dalton França disse...

Amiga Gisela, permita-me pensar que nas singularidades possa ressurgir o tato esquecido entre seres refugiados... Em si mesmos.
Ótima postagem! Um beijo!

Maria José Rezende de Lacerda disse...

Tem um selinho de presente pra você no meu blog. Beijos.

Graça Pires disse...

Olhos que registam com acutilância e sensibilidade. Uma bela fotografia a ilustrar o texto.
Um beijo enorme, Gisela.

Carmo disse...

Gisela muito interessante o seu post

Beijinhos

carmo

Daniel Gonçalves disse...

a cidade está parada
só eu me movo
por entre as palavras mal-amadas
que povoam o centro de cada rua

a cidade está sitiada
só eu escapo

fingido de árvore moribunda
arrancada ao chão

ou jornal proscrito
voando sobre a escuridão