06 dezembro, 2009

quando prometemos regressar ao nosso lugar unitivo

© Mariusz Jankowski


Luís Filipe Pereira contactou-me num dia de Abril de 2008, depois de várias tentativas para marcarmos uma visita ao meu tio António. LFP havia elaborado uma tese de mestrado sobre a obra do poeta e queria muito entregar-lhe um exemplar. Nesses dias, tentava sarar a perda de meu pai e fui adiando o encontro. Num de meus e-mails contei-lhe que passava muito tempo no meu sótão cultivando uma espécie de lugar necessário, onde o meu interior ía também modelando o exterior para poder re-habitar um outro lugar...

Muito grata fiquei ao autor quando em seu blogue - Intertextualidades - "Estou vivo e escrevo sol", foi possível ler o seguinte:


Sótão de Salutar Solidão (fragmento que dedico a Gisela Ramos Rosa)


"E todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós. E é precisamente o ser que não deseja apagá-los. Sabe por instinto que esses espaços da sua solidão são constitutivos. Mesmo quando eles estão para sempre riscados do presente, doravante estranhos a todas as promessas do futuro, mesmo quando não se tem mais o sótão, mesmo quando se perdeu a mansarda, ficará para sempre o facto de que se amou um sótão, de que se viveu numa mansarda. A eles voltamos nos sonhos nocturnos. Esses redutos têm valor de concha." Bachelard, Poética so Espaço..........................................................................

sótãos. estranhos e mágicos recessos de epifanias. alpendres invertidos soerguendo-se na surda música da respiração. um álbum esquecido torna-se vivo. o pó que esvoaça das gavetas subterrâneas late em júbililo quando o percorrem os dedos aracnídeos e nele riscam revoadas de arabescos. linhas. mapas do corpo. espumas de conchas. sótão. ermo coração da casa arfando nos gestos que escutam um texto desconhecido. sótãos para experimentar o infinito num mínimo acto de melancolia. sótãos de aventura quando a casa e o mundo adormecem como um barco à deriva numa consentida espera das vagas ciciando o eu do eu do eu na lucidez de um espaço umbilical que amanhece nos orifícios da noite. da pele. da tela em branco. sótãos-cais. sotãos-centros em que realmente nasço na luz da comunicação para além da comunicação humana. comunico com as traves. com os ninhos sonhados. com as conchas folheadas no sortilégio de um poema a escrever-se sobre os degraus dos meus joelhos. sótãos nos confins do enigma onde ecoam as notas da infância de um piano ausente-presente. tocando em surdina notas de serenidade colhidas nas linhas infinitesimais de um lugar mínimo tornando-se mais lugar do que todos os lugares. sótãos-mundos. sótãos que são exímios sítios da lonjura de mim. atraídos por um traço maior. um verso mais iluminado do que o frio lóbulo de uma lâmpada. sótãos-olhos rolando para a memória do desconhecido. para os olhos das conchas entrabertas. para os arquipélagos da intimidade que são o lugar imóvel do vaivém da tristeza. mas onde a seiva do ser alastrando sótão adentro permanece em nós aprumando-nos as asas. as imagens não decepadas que são promessas de regresso ao eu do eu do eu. que retorna ao soalho flutuante como casco nu embalando a partitura das muitas vozes da nossa voz saboreando o medo no abrigo silente dos sótãos-fronteiras. dos sótãos-passagens. conchas labiando dentro de conchas. corais que proliferam no único lugar de solidão onde é impossível estarmos sós. sótãos-respiração. sótãos que nos respiram quando fechamos os olhos e prometemos regressar ao nosso lugar unitivo........................................luís filipe pereira, Abril de 2008

*Continuo a agradecer-lhe caro Luís Filipe! O espanto que me causou pois não nos conhecíamos e nem sequer conhece o meu sótão. Muito grata pelo texto, pela sua capacidade criativa/imaginativa.

8 comentários:

Lídia Borges disse...

É reconfortante saber que a qualquer momento podem chegar até nós as justas palavras de que precisamos.

Bonito!

myra disse...

acho fantastico que alguem encontre alguem...gostei de tudo!
e formidaveis palavras, um enorme beeeeeeeeeeeeeeeeeeeijjoooooooo

luís filipe pereira disse...

Gisela, fico muito sensibilizado por ter resgatado ao tempo este texto que escrevi como idealização de um espaço que imaginei como muitíssimo significativo para si. Nele plantei, na terra lavrada de afectos, a sementeira de uma amizade, de uma partilha. Mais uma vez, neste seu gesto, o sortilégio da partilha se cumpre: o prazer de escrever este texto multiplica-se no contentamento de saber que ele como que se imprimiu no seu horizonte afectivo, mantendo intacto e redivivo o seu sentido. Bem haja, Meus maiores parabéns por este belíssimo lugar "A Matriz dos sonhos". Luís Filipe pereira

Anónimo disse...

palavras a ler e reler, de uma grande beleza e sentido de verdade. obrigada pela partilha, gisela. um grande beijinho*

Unknown disse...

É verdade Lídia. As palavras podem surpreender-nos. Um beijinho


Myra, Luís Filipe Pereira é um escritor exímio e especialista na poesia ramosrosiana. As palavras "podem" conter e isso é o que mais importa....sabe que apenas vi o Luís Filipe duas vezes? Mesmo assim, as palavras criaram uma amizade.

beijinho Myra



Caro Luís Filipe,

Obrigada de novo. Sabe que aprecio a forma intensa da sua escrita. E espero que continue a senda do poeta "estou vivo e escrevo sol".


Um abraço amigo

Unknown disse...

alice as suas palavras também são de partilha. obrigada um beijinho

João Menéres disse...

Há tempos, prometi deixar umas palavras sobre um texto do teu tio.
Reli-o várias vezes e não me senti à vontade para escrever fosse o que fosse.
É demasiado ALTO para quem não tem formação na área-
Hoje, agora quando voltei a esta tua postagem, sinto-me novamente inibido.
Dizer "muito belo" (ou equivalentes) não está no meu cardápio.
Queria dizer mais, muito mais.
Pego, ao acaso, numas palavras:

> ...a escrever-se sobre os degraus dos meus joelhos. <

Um beijo para ti e um abraço para o LFP.

Gisela Rosa disse...

João. são as palavras mais simples que se aproximam mais de nós, como em tudo na vida...

Muito obrigada por toda a gentileza