Agradeço a um amigo sociólogo ter-me aproximado do texto de Jorge Larrosa Bondía (tradução brasileira).Este texto, do qual revelo uns excertos, fala-nos da ciência moderna e eleva questões Sobre a Experiência e o Saber da Experiência, num mundo em que a experiência rareia e o conhecimento se edifica, cada vez mais, em saberes (in)formados...longínquos, sem relação com a vida humana...
"Actualmente, o conhecimento é essencialmente a ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito, que somente pode crescer; algo universal objectivo, de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de nós, como algo de que podemos nos apropriar e que podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamentalmente com o útil no seu sentido mais estritamente pragmático, num sentido estritamente instrumental. O conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamente, dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à rentabilidade e à circulação acelerada como o dinheiro. Recordem-se das teorias do capital humano ou essas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a sociedade da informação.
Em contrapartida, a “vida” reduz-se à sua dimensão biológica, à satisfação das necessidades (geralmente induzidas, sempre incrementadas pela lógica do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da sociedade. Pense-se no que significa para nós “qualidade de vida” ou “nível de vida”: nada mais que a posse de uma série de cacarecos para uso e desfrute.
Nestas condições, é claro que a mediação entre o conhecimento e a vida não é outra coisa do que a apropriação utilitária, a utilidade que se nos apresenta como “conhecimento” para as necessidades que se nos dão como “vida” e que são completamente indistintas das necessidades do Capital e do Estado (...)
A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha então sua qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência singular e concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria existência. Ter uma vida própria, pessoal, como dizia Rainer Maria von Rilke nos Cadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, quase tão raro como uma morte própria. Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz impossível a existência.
A Ciência Moderna, a que se inicia com Bacon e alcança sua formulação mais elaborada em Descartes, desconfia da experiência. E trata de convertê-la num elemento do método, isto é, do caminho seguro da ciência. A experiência já não é o meio desse saber que transforma a vida dos homens na sua singularidade, mas o método da ciência objectiva, da ciência que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do mundo. Aparece assim a ideia de uma ciência experimental. Mas aí a ciência converteu-se em experimento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e previsível a ciência. A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra a sua cara legível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um mathema, uma acumulação progressiva de verdades objectivas que, no entanto, permanecerão externas ao homem. Uma vez vencido e abandonado o saber da experiência e uma vez separado o conhecimento da existência humana, temos uma situação paradoxal. Uma enorme inflação de conhecimentos objectivos, uma enorme abundância de artefactos técnicos e uma enorme pobreza dessas formas de conhecimento que actuavam na vida humana, nela inserindo-se e transformando-a. A vida humana se fez pobre e necessitada, e o conhecimento moderno já não é o saber activo que a alimentava, iluminava e guiava a existência dos homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado dessa vida em que já não pode encarnar-se.
A segunda nota sobre o saber da experiência pretende evitar a confusão de experiência com experimento ou, se quiser, limpar a palavra experiência de suas contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações metodológicas e metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objectivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem “pré-dizer”."
Notas sobre a Experiência e o Saber da Experiência, 2002 (ler texto completo, aqui)
é doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, onde é professor titular de filosofia da educação. Publicou diversos artigos em periódicos brasileiros e tem dois livros traduzidos para o português Imagens do Outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana (Autêntica, 1999)
8 comentários:
Querida Gisela todos nós devíamos poder fazer uma viagem ao nosso interior, á nossa alma. Certamente ficaríamos chocados com algum tipo de conduta menos correcto.
Gosto de fazer introspecção e retiro,. Abre-me a mente e deito fora ideias pré concebidas.
Beijinhos
carmo
Obrigada Carmo pela sua visita. Um beijinho
"Por isso é incapaz de experiência aquele que se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ex-põe".
Penso que é justamente na capacidade de se expôr, de se dizer que reside o valor da escrita como experiência fundadora.
Obrigada por me recordar este autor.
Mil parabéns pela constante qualidade do seu blogue.
C, (de Clara?), muito obrigada pela pertinência das suas palavras, elas dão sentido ao texto. A escrita tem esse valor máximo, por certo, de poder não ser regulada...de fundar o real.
Obrigada!
intressantisssssimo!!!!!! nao conhecia este autor, beijos
Olá Gisele.
Primeiro se me permite, gostaria de pedir licença para comentar em seu blog, e comungo com esse pedido minhas desculpas por já o estar fazendo .
Tenho esse costume sempre que me disponho a escrever comentários em um blog com assuntos que me interessam. Espero que não ache meu pedido algo absurdo, mas eu explico. Meus comentários não restringem-se aos elogios repetidos , não necessariamente que o conteúdo desses seja de grande valia. Justamente por isso peço para não me tornar uma comentarista inoportuna ou indesejável.
E saiba que respeito sua opinião, talvez a única coisa que não poderá me impedir e certamente acontecerá é o fato de eu continuar apreciando esse espaço.
Cheguei movida pela curiosidade e a vontade de conhecer alguém merecedora de palavras tão ternas e que despertou o desejo de serem compartilhadas através da conquista da estima que a Luísa escreveu tão sabiamente lá no blog “um olhar de perto.”
Antes de ler o que aqui estava escrito caminhei por essas imagens observando uma clássica tecnologia,e um dos olhares mais lindos que já enxerguei por outros olhos. E ao ler as palavras que as completam fiquei sem ter o que dizer, pois não tenho esse conhecimento citado, calei-me por não saber. Mas insisto, fiquei extasiada com a percepção de quem escreveu suas impressões com tanta precisão . Citando grandes nomes e passagens da história intelectual e filosófica contradizendo-se inteligentemente ao afirmar que o conhecimento exterioriza o significado da vida.
Naquele momento não só os pensamentos assolaram minha mente que imediatamente pensei, aqui é um lugar onde muito vou aprender.
Atente-se ao fato de eu não ser uma pessoa muito bem humorada aos olhos externos, porém para quem me conhece sabe que o sorriso é uma das minhas características mais fortes, mesmo que esse não seja revelado pelo mostrar dos dentes.
Caindo no comum que é valioso e sucinto eu digo. Parabéns pelo conteúdo desse sítio.
Oi Gisela!
Teu espaço é bastante interessante, gostei muito e voltarei pra ler com calma.
Uma pergunta técnica: Que template do bloguer tu usas, pois gostaria de alterar meu blog de fotos para esta template, daria imenso jeito, se não te importares por favor me de essa dica ok.
Abraço
Gisele
Gi
Obrigada por teu carinho, eu vou aguardar então, és uma querida!
bj
Gi ;)
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