11 setembro, 2009

"Amanhã"




Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.

Pintura de Goya, A dog, 1820-22– Fresco -Madrid, Museu do Prado


Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.



JORGE DE SENA
CARTA A MEUS FILHOS
Sobre os fuzilamentos de Goya

5 comentários:

João Menéres disse...

Admirador de Sena, não conhecia a CARTA (pelo menos nunca a tinha lido. Se calhar até tenho aqui em casa ...).
Pecado meu, a juntar a outros.
Li e reli para me procurar auto-penitenciar.
Sempre na busca de uma frase, de umas meras palavras que pudesse salientar para neste comentário referir.
Tarefa inútil, pois Jorge de Sena é um outro dos MAIORES e, então, nesta CARTA A MEUS FILHOS parece ultrapassar-se a si próprio, tamanha a dimensão da sua poesia escrita em forma de prosa, como convém numa epístola.
Estou feliz por ser teu SEGUIDOR. Doutra forma, escapar-me-ia esta jóia literária que nos não permite esquecer a atenção que, a todo o momento, temos que ter em relação aos que nos governam e afirmam cuidar exclusivamente do nosso bem.

Um beijo agradecido pelo muito que aqui fiquei enriquecido, GISELA.

dade amorim disse...

Lindíssima homenagem a esse poeta que foi um pouco brasileiro também.
Beijo e um ótimo fim de semana.

C. disse...

Muito oportuna esta homenagem e, sobretudo, belíssima composição com a escolha desta ilustração para o poema.

É por estas (e outras) que já considerámos este espaço "um blog viciante". Pode, (se assim o entender,evidentemente), copiar o selo para si.

Obrigada pela partilha e pelo prazer que me tem dado com o seu trabalho.

Luísa disse...

Sempre oportuna a reflexão sobre o mundo, o que ele nos trouxe e o que ele nos reserva.
Eis uma carta que nos deixa a reflectir...Que mundo preparams para os nossos filhos?
Apesar de lhes desejarmos o melhor, sabemos que há quem cá estaja para estragar os planos dos progenitores.É melhor acreditarmos que ninguém o poderá fazer.
muito obrigada pela carta de Goya. não conhecia.

Beijinho terno!

Anónimo disse...

Bela homenagem! Eu escolhi 'País de Sacanas' ehehehehe

Beijinho grande