09 maio, 2009

De verde eternidade e não prodígios

Desenho de Pablo Picasso, 1921

Arte Poética

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio.
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver só na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;

A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.

Jorge Luís Borges, Arte Poética pp. 63 e 65,
em Poemas escolhidos selecção feita pelo autor Ruy Belo, Dom Quixote, 2003
.



* o Título é um verso do poema de JLB.

10 comentários:

El Viejo @gustín disse...

Borges!!!
trasiende as fronteiras É Universal
1 Abrazo fuerte Amiga

Gisela Rosa disse...

Agustin!


Yo sou una seguidora de todas las palabras de Borges, todas...
abrazo fuerte!

José Manuel Vilhena disse...

"Contam que Ulisses, farto de prodígios..."

Só Borges...esse rio subterrâneo...


um beijinho

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Um interminável rio , verdadeiro !
Um prazer ler Borges aqui na Matriz!
abraço
__________ JRMARTO

Graça Pires disse...

"Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar a Ítaca
De verde eternidade e não prodígios."
Belíssimo! Só Jorge Luís Borges para nos encantar com uma poesia que é, de facto, um interminável rio.
Beijos Gisela.

so lonely disse...

de sonhos e de rios
foi feita a minha vida.
num espelho já me olhei
e a vida acabada
foi núvem que passou
sem chuva, sem mais nada...

Eleonora Marino Duarte disse...

gisela,

é interessante observar alguém com afeições semelhantes. aqui já encontrei algumas!

borges é um escritor especial para mim... quando eu começo a não compreender bem o que acontece ao meu redor, ou quando o mundo fica perverso demais, ou quando sinto ares de que as coisas estão se perdando de um eixo, é nele que encontro um tom mais transcendente para acrescentar mágica a realidade nua e cura.

gosto muitíssimo dele, preciso muitíssimo dele...

vir aqui para mim é um caso de satisfação pessoal, tamanha a admiração que tenho pelo espaço que você criou aqui...

um forte abraço!

Anónimo disse...

uma poesia superior, só ao alcance da pena de raros poetas, gisela. obrigada por aqui o partilhar com tão bela edição. um beijinho.

(agradeço as suas palavras tão generosas n'a tradução).

Gisela Rosa disse...

JMV, como os prodígios são desnecessários ...para a construção do Ser...essa Ítaca que Ulisses divisava. Beijinho obrigada pelo comentário.

Vaandando, um rio de palavras mais que verdadeiro...Obrigada!

Graça, este poema de Borges é transparente como a água do rio...Um beijinho muito grande.


So lonely, muito obrigada por ter cá chegado....com o curso do rio....
volte sempre!


Betina, Obrigada! é também "nele que encontro um tom mais transcendente para acrescentar mágica na realidade nua e crua." tendo que aceitar muitas coisas que realmente são reflexo da realidade "dos prodígios" oca e vazia....Um beijo, gosto da sua expressão.


alice, a sua sensibilidade toca-me. muito obrigada! Um beijinho.


Um terno abraço a todos,

Marta disse...

este tb vive em mim!

beijinho, Gisela