15 março, 2009

O corpo dança a gramática do sentido

Pássaro livre, fotografia de António Gil, em http://olhares.aeiou.pt/passaro_livre_foto2527917.html


No começo era o movimento.

Não havia repouso porque não havia paragem do movimento. O repouso era apenas uma imagem demasiado vasta daquilo que se movia, uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o movimento. Crescia-se para repousar, misturavam-se os mapas, reunia-se o espaço, unificava-se o tempo num presente que parecia estar em toda a parte, para sempre, ao mesmo tempo. Suspirava-se de alívio, pensava-se ter-se alcançado a imobilidade. Era possível enfim olhar-se a si próprio numa imagem apaziguadora de si e do mundo.

Era esquecer o movimento que continuava em silêncio no fundo dos corpos. Microscopicamente. Porque, como se passaria do movimento ao repouso se não houvesse já movimento no repouso?

No começo não havia pois começo.

No começo era o movimento porque o começo era o homem de pé, na Terra. Erguera-se sobre os dois pés oscilando, visando o equilíbrio. O corpo não era mais que um campo de forças atravessado por mil correntes, tensões, movimentos. Buscava um ponto de apoio. Uma espécie de parapeito contra esse tumulto que abalava os seus ossos e a sua carne.

Então a linguagem nascia num relâmpago, os sons combinavam-se, as palavras encadeavam-se, os sentidos incendiavam-se, a marcha desencadeava os seus passos na alegria, e hesitava na angústia de cair. A vida transbordava.

O bailarino retoma o seu corpo nesse momento preciso em que perde o seu equilíbrio e se arrisca a cair no vazio. Luta, jogando tudo por tudo: está em jogo a sua vida, a sua liberdade de bailarino, a sua luz. Faz apelo ao movimento, que proporcionará claridade e estabilidade à sua extrema agitação interior. Por meio de movimento domará o movimento: com um gesto libertará a velocidade que arrebatará o seu corpo traçando uma forma de espaço. Uma forma de espaço-corpo efémero, por cima do abismo.(...)

José Gil, Movimento Total - O corpo e a Dança, Prólogo, pp.13-14, 2001



* o título deste post foi extraído do livro de José Gil (idem, p.119) acima referido.

8 comentários:

José Manuel Vilhena disse...

"No começo era o movimento porque o começo era o homem de pé, na Terra. Erguera-se sobre os dois pés oscilando, visando o equilíbrio. O corpo não era mais que um campo de forças atravessado por mil correntes..."
José Gil é fascinante porque sabe do que fala.
O autor da fotografia também.
O mesmo para a autora do blog que fez a escolha.

um beijinho

Gisela Rosa disse...

José Vilhena, obrigada por ter inaugurado este meu post. E se refere as palavras a propósito do texto de José Gil é porque as sente também, como um especialista da memória no tempo sempre em movimento...um abraço fraterno e saiba que visito os seus blogs porque gosto muito da sua luz!

PAS[Ç]SOS disse...

É do quase nada que nasce o quase tudo... é no cansaço do repouso que fazemos nascer o movimento... é na fadiga da dor que criamos a vitalidade do grito... e cada começo marca um fim... e à beira de cada precipício procuramos o equilíbrio... e são os gestos que nos fazem NÓS!

Graça Pires disse...

No fim de ler este texto de José Gil e de ver a fotografia que o acompanha apetece dançar... E apetece escrever porque
"a linguagem nascia num relâmpago, os sons combinavam-se, as palavras encadeavam-se, os sentidos incendiavam-se, a marcha desencadeava os seus passos na alegria"
Um grande beijo Gisela.

dade amorim disse...

É esse "espaço-corpo efémero, por cima do abismo" o que importa de verdade: o corpo recriado, o abismo sublimado. Belo texto, Gisela.
Beijos.

Gisela Rosa disse...

Passos, é como diz, porque sabe muito bem que é no desequilíbrio que aprendemos a andar e na busca do equilíbrio aprendemos a dançar. Obrigada!!


Graça, eu delirei com a leitura deste livro de José Gil, dancei o tempo todo com o pensamento e deste modo também projectei o meu corpo na esfera da dança. Um beijinho e obrigada!


É isso aí Adelaide, "o corpo recriado" é por cima do abismo que o gesto se liberta e o corpo traça uma forma de espaço onde se equilibra. Um grande abraço e muito obrigada!



Adorei os vossos comentários! Um beijo a todos

16 de Março de 2009 20:44
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adouro-te disse...

... é por estas e por outras que me fascina o pião e o disco com as cores do arco-íris na vertigem dos seus movimentos.
Tão simples!
Beijo.

Gisela Rosa disse...

Mateo adoro a sua escrita...um código que se des-codifica....tão simples!
Muito obrigada, Um abraço